Desligado o despertador,
continuei olhando para o teto durante cerca de cinco minutos. Ouvi minha mãe
acordar, ir a cozinha e começar o ritual matinal: minha vitamina de babana com
chocolate; desde que me conheço como gente, ela sempre faz essa vitamina. Fechei
os olhos, ela iria abrir a porta do quarto em minutos para me entregar o copo,
porque não mais uns minutinhos sagrados de sono. Flashes do pesadelo ainda
estavam bastante reais em minha cabeça, a zoada do liquidificador fazia uma
alusão tosca da mistura de pensamentos naquele momento. Silêncio, minutos
depois quebrados pelo som macabro que a porta do meu quarto faz ao abrir, não
tinha óleo certo que fizesse diminuir esse som medonho. Entra minha mãe, me
entrega o copo, tão sonolenta quanto eu, e deixa o quarto. Tomo em longos 5
goles intercalados com breves cochilos. Os momentos seguintes são tão mecânicos
que são feitos automaticamente, para não dizer ainda inconscientemente. Levanto,
coloco o copo na pia, pego a toalha, vou para o banheiro, urino, tomo banho,
escovo os dentes, me arrumo, desodorante, perfume, “mãe to saindo”, “pegou o
dinheiro?”, “peguei”, “vai com Deus”, “amém”, saio de casa com o pé direito,
sempre pé direito, chego ao ponto, estou atrasado! Observo o movimento e
procuro por sinal de vida universitária esperando ônibus (será que já passou?),
provavelmente já subiu para linha final, os pontos de lá estão vazios. Não
custaria nada eu chegar a alguém no ponto e perguntar se o ônibus para a
universidade já tinha passado, mas é mortificante para mim tomar informação
qualquer a terceiros. Não só tomar informações, mas falar no telefone para
pedir alguma coisa ao ‘disk sei lá o que’ ou ligar para o telefone fixo de
alguém e acabar não atendendo a pessoa para quem liguei e ser obrigado a falar
com outrem, ou até mesmo falar em público, tão angustiante. Eis então que desce
a rua, o ônibus, aliviado entro no coletivo, típico de uma segunda feira, acima
de sua capacidade de lotação. Sei que ainda irá parar em ao menos 7 pontos para
entrar pessoas, vou para o fundo, pacientemente educado pedindo licença.
Encontro um cantinho, me encaixo, uma alma caridosa se disponibiliza para
segurar minha mochila, até porque se não se oferecesse eu ficaria batendo com
ela na cabeça até pedir para segurar, e então mais uma hora até meu destino
final.
Era
um bom humor estranho apesar de tudo que aconteceu nessas primeiras horas do
dia, que o caminho da porta da universidade até minha sala, o qual faria em
menos de 2 minutos, fiz em cinco, ouvindo música, sentindo cheiro do orvalho.
Subi as escadas, passei pela cantina, observo o movimento, ninguém de minha
sala do lado de fora, o mesmo ao entrar no corredor, provavelmente a aula já
começou, abri a porta e entrei. A aula de hoje era sobre Cuidados de Enfermagem
ao Paciente com Moléstia da Preguiça Crônica, ao menos deveria ser, meus
colegas resumiam-se a zumbis. Aquele tédio todo não poderia ser só sono e de
fato eu estava a descobrir que não era. O olhar de satisfação, só que ao
contrário, que recebi da professora foi prontamente retribuído assim que ela
virou as costas para escrever no quadro. Dei “bom dia” mudo por quem passei e sentei
no meu lugar marcado por Amanda, sempre sento ali, no canto da sala, uma
fileira antes da última, embaixo da janela. Nessa fileira sentamos os quatro:
eu, Amanda, Carolina e Daianne, fica mais fácil de passar o tempo quando a aula
é ruim, geralmente Cibele aproveitava e se encaixava, isso dependia do humor
inconstante dela. Mandy tratou de começar a contar o final de semana dela
enquanto eu pegava meu caderno e caneta, adverti-a, uma vez que a professora
nos olhou friamente, pedi que falasse ao menos mais baixo e disfarçasse, pura
arte ela fingir que me explicava o início da aula que perdi, mas na verdade
estava falando dos machos que ela queria ter ficado na festa de fulaninho de
Veterinária e os outros tantos machos que Cibele pegou. “TO MUCH” ela falou acidentalmente
alto, em tom de reprovação ao feito dessa colega, num momento de profundo
silêncio da sala, todos olharam, a professora chiou, segurei o riso, Daianne
por sua vez não conseguiu se controlar e Carolina só olhando de canto de olho e
suplicando para que a gente se controlasse. Ficamos quietos, então.
Meu
celular dá dois toques que lembram um grilo, era uma mensagem, Carolina olha de
canto de olho, ela era a mais velhas de nós quatro, então ela sempre tentava
colocar um pouco de ordem, pedi desculpas, coloquei o celular no vibracal e li
a mensagem. Era de Gustavo, ele estava sentado do outro lado da sala, sempre
fazíamos isso quando tinha algo de importante para falar ao outro, ou quando
uma ideia surgia, uma situação inusitada acabara de acontecer, ou simplesmente
pelo fato de estarmos entediados mesmo. “Bom dia, filho”, dizia o torpedo,
olhei para ele, escrevia as anotações do quadro e sorria, ri de cá também e
respondi “Bom dia ;)”. O vi receber a mensagem e rir, podia parecer tolo, mas
tão divertido na situação em que nos encontrávamos. A professora terminou a
aula depois de três cansativos e desgastantes períodos e perguntou onde estava
o líder da sala, levantei a mão, estava nessa função tempo o suficiente para
pesar o braço ao levantar, um saco. Ela entregou um pacote, tomei um susto,
olhei para a turma, todos apreensivos, mas não tão assustados quanto eu, nos
momentos iniciais da aula devo ter perdido ela anunciando que trazia consigo as
provas corrigidas. Ela começou um discurso com sorrisos sobre o quão as notas
tinham sido baixas (porcas), que tinha sido geral, que nunca tinha visto algo
do tipo, que faria uma segunda prova e em seguida saiu da sala como se o café
estivesse derramando no fogão. Fui entregado as primeiras provas, vejo o nome
da pessoa, foco nele, com minha visão periférica identifico a nota, porém não
consigo lê-la, dobro nesta parte e entrego ao dono. “ZERO?!!” gritam os três
primeiros, “COMO ASSIM, ZERO?!!”. Minha ética ficou de lado e ao entregar as
notas comecei a ver o desastre que tinha sido. Uma chuva de décimos varreu a
sala. Se somasse os pontos de todas as provas não dava dez. Desespero e
indignação tomou conta da sala. Neste primeiro momento todos com sentimento de
revolução: “TEMOS QUE FAZER ALGUMA COISA”, “ISSO ESTÁ ERRADO!”. Segundos
depois, o sangue esfriando alguns: “gente, calma! Ela vai fazer outra prova!”,
“Melhor não envolver o Colegiado nisso, só vai fazer a professora se estressar
e ‘fuder’ com a gente”, “Vamos esperar essa segunda prova”, e como numa lavagem
cerebral, todos da turma simplesmente colocam o rabinho entre as pernas e, como
cachorro treinado, esperando o
biscoitinho do dono.
A
aula seguinte foi silenciosa. Poucos conseguiam prestar atenção ao que se era
ensinado, muitos saiam para comer ou beber água, outros ficavam usando seus
notebooks, eu estava no meu celular. A comida do almoço tinha um gosto
estranho, não descia, aquela professora tinha acabado com o dia de todos.
Primeiro período da tarde começava, eu estava tão atordoado que sentei na
primeira cadeira perto da saída, queria ser o primeiro a ir embora assim que a
aula acabasse. Estava muito calor, todos estavam cansados e estressados, a
professora dava aula e minha mente estava em outro lugar, eu estava com o corpo
mole, com muito sono. Roberta e seu cabelo longo entra na sala em câmera lenta,
linda e sorridente dá boa tarde, tudo era mais interessante que aquela aula,
até o fio de cabelo dela que caia delicadamente até o chão. Um vento frio do ar
condicionado dos laboratórios de computação entrou e deixei a porta aberta. A
cada curtos espaços de tempo entrava o ar refrigerado, levando ao gozo aqueles
perto da porta, mas se tinha algo mais interessante que isso era o movimento
dos transeuntes do corredor e meu desejo de estar entre eles.
- Encosta essa
porta, por favor! - a professora chiou!
Minha
irritabilidade subiu ao nível insuportável. Peguei o copo descartável da colega
ao lado e saí da sala, inconscientemente batendo a porta com força. Dei o play
no iPod e curti o momento. Cheguei ao bebedouro mais próximo, sem água, rotina
naquela universidade. Atravessei a cantina lotada, como todo dia de segunda
feira, muitos compartilhando o mesmo desejo que o meu, ir embora. Cheguei ao
outro corredor, no bebedouro encho meu copo de água. E então aquela sensação de
que aquela situação já tinha acontecido antes, Déjà Vu, e como socos de
realidade, lembro-me do sonho. Nesse momento começou a tocar Party de Beyoncé no meu iPod, estava
tudo estranhamente idêntico ao meu sonho e provavelmente por causa do medo,
minha bexiga parecia estourar. Eu não queria ir naquele banheiro, não queria
que tudo ficasse mais estranho do que já estava, mas não aguentaria ir a outro,
tive que ir naquele mesmo. Já molhando a cueca, consegui abrir o zíper da calça
e alívio. No momento seguinte percebo que entrei no mesmo box do banheiro em
que estava no meu sonho: “DROGA”, pensei! Forcei a urina para sair mais rápido,
tinha que sair dali urgentemente. Acabei, balancei e quando estava para abrir a
porta, barulho de gente entrando no banheiro: “não pode ser”, pensei com a
respiração alterada. Travei ao destrancar a porta e ali fiquei. Duas pessoas no
box do lado, minhas pernas tremiam, qual era a possibilidade daquilo estar
acontecendo, como é que meu sonho estava se tornando realidade, ou será que eu
estava sonhando de novo? Poderia ter dormido na aula, pode ter sido isso, mas
no meio dos meus pensamentos, ouvi o clique da porta ao lado trancando e
aproveitei para sair correndo o mais rápido que podia. Dou de cara com um
segurança no final do corredor, fui em direção a ele e então me peguei numa
situação constrangedora, eu ia falar exatamente o quê para ele? “Ei, é o
seguinte, sonhei que alguém atirava em um cara no banheiro, corre lá que acho
que tá acontecendo”. Isso sempre soa patético em filmes de terror, por que na
vida real não seria? Escuto passos. Gente saindo do banheiro, me posicionei ao
lado do segurança, que idiota eu estava sendo, dando créditos a um sonho,
imagina que loucura, alguém atirar em outra pessoa no meio da universidade. Um
garoto branco sai do banheiro, nunca o tinha visto por ali antes, ele tinha
cara de quem estava tentando esconder algo, segurava um objeto preso na calça,
escondido embaixo da blusa, minha barriga embrulhou, ele me encarou e assim
ficou até passar, com um olhar de “não fale nada”. Aquela cena durou uma
eternidade, o vi descer as escadas e desaparecer, o segurança pediu licença e
fez o mesmo.
Comecei a rir
tentando imaginar a minha cara e tentando absorver tudo o que tinha acontecido.
Provavelmente o segurança pensou que eu tinha fumado uma ou tava tirando sarro
com a cara dele. Minha boca tava seca, fui beber mais água. Enquanto me
abaixava e sentia o jato de água tocar meus lábios, percebo que a segunda
figura não tinha saído do banheiro ainda. Pensamentos, porque tão
impertinentes; curiosidade, porque tão desagradável. Entrei no banheiro. “Era
só um sonho, menino, deixa de paranóia”. A porta do primeiro box estava
entreaberta, estava tudo silêncio, eu ouvi duas pessoas no banheiro e só uma
saiu, eu não estava louco, ou estava? Perguntar se tinha alguém ali seria total
sem sentido, ou não, a verdade é que eu não conseguia pensar nada, só me vinha
na cabeça a cena do garoto morto na privada, as pernas estiradas, a cabeça para
trás por cima da caixa de água da descarga, rosto coberto de sangue, sua boca
aberta e os miolos estourados na parede, o estômago embrulhou de novo. E então
eu estava esticando a mão para abrir a porta. Fechei os olhos, respirei fundo,
tornei a abrí-los, prendi a respiração. Dei um passo, olhos vidrados na porta.
Minhas mãos chegavam perto da porta. Dei um segundo passo. Meus dedos sentiam a
madeira agora. Soltava o ar aos poucos,
parecia que estava perdendo uma raridade. Coloquei uma pequena fração de força
na porta. O ambiente interior do box ia se materializando aos poucos, eu só via
a parede lateral até então. Um estrondo forte! O susto bateu em mim com tanta
força que fui parar do outro lado da parede horrorizado. O grito tentou sair,
mas não tinha ar nos pulmões para tanto. A visão ficou embaçada por um momento
e tudo ficou claro de novo. A porta do box tinha escancarado sozinha em um
baque. Agora eu via o interior do box. Via o garoto. Mesmo jeans que estava
usando em meu sonho, cueca azul à mostra, blusa branca. Mas agora eu conseguia
ver seu rosto, não havia sangue. Na verdade, ele estava em pé, tão assustado
quanto eu. Provavelmente dois segundos se passaram e continuávamos encarando um
ao outro, adrenalina alucinante correndo nas veias.
- Que susto
cara! – falou ele terminando de fechar o zíper da calça.
- É! Susto,
mesmo! – recuperando o fôlego, falei.
Ele riu.
- Falou,
então.
Saiu do
banheiro, sem lavar as mãos. Fui até a pia, respirei fundo e lavei o rosto. Um
idiota olhava para mim pelo espelho, idiota esse de deixar se levar por um
sonho. Voltei para sala, abri a porta e a aula estava acabando mais cedo.
Arrumei minhas coisas, assinei meu nome na lista, me despedi das meninas e saí.
Elas nem perceberam o quão atordoado eu estava. Gustavo me alcançou no
corredor:
- A gente nem
conversou direito hoje, né?
- Verdade.
- Bem?
- Sim e você?
- Indo – ele
riu – Nem te contei, meu irmão tá me ensinando a atirar. Fui para Naijutá esse
final de semana, saudades de mamãe, e fomos no sítio de meu tio. Meu irmão
tirou folga no batalhão e lá a gente treinou tiro ao alvo. Velho, é sensacional!
Sério mesmo, você tem que experimentar!
- Legal –
sorri.
- O que você
tem, nego? Triste?
- Dor de
cabeça, sono, estresse, acho.
- Culpa de
Deusam? Ela acabou com o dia de todo mundo – ele resmungou alguma coisa - Mas
relaxe, nego, fique assim não, vamos esperar essa segunda prova dela e ver o
que vai dar. Sorria, meu querido, não gosto de te ver assim.
Me passou o
braço pelos ombros, fomos andando enquanto ele tentava me fazer rir. A pequena
Giselle nos encontrou no meio do caminho, abraçou os dois e então contei meu
sonho e o acontecido no banheiro, eles soltaram gargalhadas e mal conseguiam
falar. Risos até a despedida na porta da universidade e cada um seguiu o rumo
de suas casas.
"Let us
consider that we are all insane. It will explain us to each other; it will
unriddle many riddles..."
Mark Twain
HAHAHAHAHA
ResponderExcluirAdorei a versão realidade da nossa possível "loucura transcendental". Muito bom... Imaginei a cara das pessoas que saíram do banheiro.
Ah! Naijutá?! kkkkkkkkkkkkk E chamar a pessoa de Medusa, ops!, Deusam... HAHAHAHA
Muito bom, amigo!