quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Capítulo 1 - Bawaajige Nagwaagan


Quente era o estado de espírito que a sala se encontrava naquele momento. Aulas em pleno Janeiro, no meio do verão, foi a coisa mais absurda que poderia ter acontecido. Estudante estressado, professores cansados, não poderia ser mais improdutivo. Mas ali estávamos nós, firmes, talvez não fortes. A professora falava, lecionar é outra coisa, parecia que estava com a bexiga cheia e precisaria sair às pressas da sala de aula. Aquela carinha inchada, vermelhinha, fofinha, parecia estar mais irritante do que nunca. Sempre que possível, deixávamos a porta aberta, o frescor do ar condicionado que vinha das salas do curso de Computação transmitia àqueles que estavam mais próximos à saída uma sensação de prazer descomunal. Aquele calor promovendo a vasodilatação arterial, baixando consideravelmente minha pressão, deixando meu corpo mole, proporcionando um sono que deixava a cadeira dura a mais confortável, eu já não conseguia prestar atenção em mais nada, somente no movimento dos transeuntes do corredor, desejando estar entre eles.
- Encosta essa porta, por favor! - a professora chiou! Minha irritabilidade subiu ao nível insuportável. Peguei o copo descartável da colega ao lado e saí da sala, inconscientemente batendo a porta com força. Dei o play no iPod e curti o momento. Cheguei ao bebedouro mais próximo, sem água, rotina naquela universidade. Atravessei a cantina lotada, como todo dia de segunda feira, muitos compartilhando o mesmo desejo que o meu, ir embora. Cheguei ao outro corredor, no bebedouro encho meu copo de água. Não entendo essa coisa psicológica em sentir vontade de ir ao banheiro ao ouvir ou ver água, mas como a porta era ao lado, lá entrei. Caminhei até o box mais longe da porta, são os meus preferidos não sei o porquê, sempre evito os mictórios, gosto de privacidade. Alívio! "So in love, I'd give it all away, just don't tell nobody tomorrow.’Cause tonight's the night that I give you everything, music knockin' 'til the morning light...” eu me pegava cantando a música de Beyoncé nesse momento de prazer, movimentando-me de um lado para o outro, porém sem errar o buraco, “estranha essa cena”, pensei.

Um ruído então me chama atenção. Parecia alguém se batendo contra alguma coisa, escuto vozes. “Sabia que você curtia”, dizia alguém no box ao lado do meu, próximo a porta. Meu coração disparou! “Pegação logo nesse banheiro, loucos”, pensei. Excitei. Então os ruídos ficaram mais estranhos, parecia que alguém tampava a boca da outra pessoa para não emitir sons, fiquei constrangido, era a hora de sair dali. Por mais que minha curiosidade quisesse que eu ficasse, talvez esperaria na cantina para ver quem saísse do banheiro. Então um disparo! Pulei de susto. Um baque no chão, alguém agonizava, outra pessoa ria, começava outro diálogo. Não conseguia entender o que a pessoa falava, mas não parecia ser normal. Comecei a transpirar. Outro disparo. Segurei o grito. Tranquei a porta do meu box. Aquilo estava muito estranho! Acabaram de atirar em alguém no banheiro ao lado e eu estava ali, preso, encurralado. A porta do box ao lado abriu e fez-se silêncio. Eu estava consumido pelo medo. A qualquer momento a pessoa perceberia a minha porta fechada, isso se ela não me ouviu trancá-la, poderia forçar, executar disparos contra ela. Eu tremia, subi na privada para que se o cara resolvesse olhar por debaixo da porta e visse meus pés. Mal conseguia me equilibrar em pé. Minutos passaram, nada acontecia, nada se ouvia, meu celular ficou na mochila, na sala de aula, eu tinha que sair dali. Quanto tempo mais eu teria que esperar até que fosse seguro sair do banheiro? O cara poderia estar só esperando eu destrancar a porta. Será que foi algo isolado? Por que diabos deixei meu celular na mochila? Mais cinco minutos se passaram, resolvi que precisava sair.
Destranquei a porta, abri lentamente observando o interior do banheiro, nenhum sinal de qualquer pessoa. Mas ali tinha uma pessoa e o seu sangue agora escorria no chão branco de azulejo que evidenciava aquele vermelho lindo e intenso, porém atormentador. O medo tirou minha voz e respiração, meu coração parecia querer sair dali correndo como o próprio dono, a caixa torácica não parecia um lugar mais seguro, as pernas andavam, mas mal se sustentavam. Andei, saí do box. Agora eu via as pernas da vítima no box ao lado com a porta aberta. Ela estava com o zíper da calça jeans aberta, cueca azul à mostra, blusa branca que estava virando um vermelho vivo, o sangue brotava na altura do umbigo. O garoto jazia sentado na privada, as pernas estiradas, a cabeça para trás lateralizada por cima da caixa de água da descarga, não conseguia ver seu rosto coberto de sangue, sua boca aberta, material encefálico espalhado pela parede. Meu estomago revirava. Encarei a porta de saída. O medo e a razão não entravam em acordo, ao mesmo tempo em que queriam sair correndo daquele lugar, pensavam que talvez fosse mais seguro que lá fora. Dei mais dois passos e parei, agora encarava o banheiro feminino, será que ele estaria ali dentro? E se estivesse me esperando lá fora? Ele viu meu box trancado, ele sabia que ali tinha alguém. Para que lado do corredor eu olharia primeiro? Se o atirador estivesse lá fora e eu olhasse para o lado contrário, não daria nem tempo de eu pensar em correr, o tiro atravessaria minha nuca em segundos. Estiquei minha perna direita, me apoiei no batente da porta, projetei ligeiramente minha cabeça para o corredor, olhei para direção da cantina, ninguém. No mesmo segundo já olhei para o outro lado do corredor, tão vazio quanto. Mas ele poderia estar em alguma das salas ou na cantina, quis chorar. Com a mão na boca, achando que diminuiria o som da minha respiração, agora ofegante, saí do banheiro e caminhei em direção à cantina pelos cantos da parede do corredor, pisando ao chão como se fosse de vidro, queria ser silencioso. A cada passo um olhar para trás.
Encostei-me ao portão de grade que tem na entrada de cada corredor da universidade. Olhei para a cantina. Silêncio angustiante, não tinha ninguém, nem jogado ao chão, parecia ser um dia de domingo. Olhei para a escada à direita, era por ela que eu iria descer, encostei contra a parede, respirei fundo com os olhos fechados, uma lágrima desceu contra minha vontade e fui. Evitei não correr para não fazer barulho, mas quis andar rápido quando congelei. Alguém gritava por socorro ao longe! Abaixei-me e esperei tentar descobrir de onde vinham os gritos. Não via nada e nem ninguém no andar de baixo do campus, tudo deserto, mas os gritos não paravam. Era a minha chance, correr o mais rápido possível contra a origem dos gritos. Levantei decidido quando o meu corpo petrificou pela segunda vez. Tinha algo naquele clamor que me chamou atenção e então quando ouvi mais uma vez entendi o porquê. Eu sabia quem estava gritando e eu precisava ajudar, mas como? Se o cara estivesse lá, eu desarmado seria só mais uma vítima para ele se divertir. Mas e se o cara não estivesse, se a pessoa estivesse só machucada? Não sei quanto tempo fiquei agarrado ao corrimão da escada, mas então levantei e subi.
Atravessei a cantina onde parecia que não tinha recebido ninguém naquele dia ainda. Estava limpa e vazia. Meu olhar corria das escadas para as entradas dos corredores e os balcões. Não sabia ainda o que estava acontecendo, se estava acontecendo, agora eu chorava de verdade querendo não mais estar ali, desejando que alguém me acordasse de um sonho que não queria acabar. Os gritos, agora mais perturbadores que nunca ficavam mais altos e intensos, tinha dor na voz, meu colega, meu melhor amigo Gustavo estava sofrendo. Aquilo me corroía como ácido por dentro, parecia que cada pedido de ajuda era um golpe que eu levava na barriga, a impotência e não saber o que fazer me destruía. Agora eu encarava o corredor, o corredor onde ficava minha sala de aula, será que ele estava lá? Olhei para o andar de baixo, nenhum carro estacionado, tentei observar movimentos na guarita e nada, até a rodovia que conseguia enxergar ao longe parecia deserta e então o mais alto de todos os gritos.
Aquilo me acendeu como uma fagulha em pólvora e eu estava correndo corredor adentro. Eu não escutava nada, nem minha respiração, nem minhas pisadas ao correr, meus olhos estavam fixados na porta da sala 6013. Quanto mais eu corria, mais parecia estar longe da sala, era como se tudo estivesse em câmera lenta. Eu não poderia ficar parado enquanto meu amigo suplicava por ajuda, não era justo com ele, com nossa amizade. Nem que eu morresse ali também, ao menos ele saberia que eu tentei, eu estaria com a consciência tranquila, poderia encostar a cabeça no travesseiro à noite sem que o fantasma dele me assombrasse. E então ali eu estava de frente à porta da minha sala, fechada. Era só abrir, mas não era tão simples assim. Choro e gemidos podiam ser ouvidos de fora. Eu tremia, coloquei a mão na maçaneta, fechei os olhos, abri a porta.
Ao abrir os olhos, algo gelado encosta na minha testa, uma mão com pele clara segura um revólver contra minha cabeça, silêncio. Senti como se eu fosse despencar, a adrenalina corria pelas minhas veias, meu coração estava disparado, uma ânsia de vômito, eu transpirava, lágrimas desciam inconscientemente, fechei os olhos, silêncio. Pensei em minha mãe, mais lágrimas caíram, o quanto ela vai sofrer, aquilo me doeu. Interessante que você começa a pensar em todas as pessoas que você mais gosta na vida, consequentemente ao lembrar-se delas recorda-se dos momentos, isso então é quando se passa um filme pela sua cabeça, fui feliz, calmaria. Eu só precisava ver meu amigo mais uma vez e olhar na cara de meu assassino, abri os olhos. Disparo!
Tudo escuro. Vento quente no meu rosto. Vento quente? Cadê paz? Cadê luz branca? Que ruído é esse? Eu estava enterrado em minha cama, encharcado de suor, talvez até de mais coisas. Meu celular ao lado me despertava para o dia que nem nasceu ainda. Fiquei absorvendo aquele sono angustiante, uma leve dor de cabeça, eu encarava o teto, atônito. Ainda estava escuro, mas sabia que estava ali, o dreamcatcher, sem sentido mais, talvez passado da validade, sem serventia, tinha que tirar aquilo dali. Finalmente desligado o despertador. Estou vivo, foi um pesadelo. Uma péssima maneira que começar uma segunda.


“Unfortunately, a superabundance of dreams is paid for by a growing potential for nightmares”
Sir Peter Ustinov

3 comentários:

  1. Que linda história. Que lindo sonho. Me fez viajar bastante... Gostei muito. E, além de tudo, obrigado pelas declarações. /:)
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    Abraços amigo.

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  2. Eu acho que esse blog deveria ser mudado para transcrições de sonhos! hihi

    Brincadeirinha. Você escreve narrativas ótimas, sabia? Fiquei angustiado e queria desesperadamente chegar ao fim da história! Curti.

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  3. Muuito legal Calleo! Não conhecia este seu lado escritor...

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